Muito se fala sobre a dilatação do tempo em tempos pandêmico e pós-pandêmico. Os filmes, como eles são assistidos e transformados através dessa noção espacial mudada. “A Invenção do Outro” é um longa-metragem dirigido por Bruno Jorge, que, através de suas pouco mais de duas horas, estende o tempo como forma de traduzir uma busca apreensiva e inquieta através do silêncio.
E o tempo, de fato é um ativo muito caro que circula o filme: assassinado em junho de 2022 junto com o jornalista Dom Philips, o indigenista Bruno Pereira protagoniza a obra. O caso traz uma ironia trágica, extremamente dramática e que comprova um dos perigos avistados nos últimos anos durante o governo bolsonarista. O Festival de Brasília de 2022, no qual a produção teve sua primeira exibição, circulou questões com ênfase na política. Assim, dado o contexto, o diálogo aberto para essa situação contemporânea e o longa-metragem filmado em 2019 é de extrema simbiose, se completam como necessidade. Claro, é uma fatídica coincidência, que não infla artificialmente o cinema proposto por Bruno Jorge; ao contrário: é uma forma de aprofundar o sabor amargo e a política ocorrida durante os últimos quatro anos.
Para mais, o cineasta decide que sua viagem é introspectiva. Ela deve ser silenciosa, sem se intrometer dentro das entrevistas, apenas observante. Em contraste com outros documentários apresentados na seleção do Festival, é um cinema menos expositivo. Durante o progredir do filme, veremos grande parte em diálogos de língua korubo, o que traz toda a narrativa para o campo desconhecido. Combine isso com uma fotografia incansável dentro de florestas fechadas, enclausuradas, que não trocam para uma pura contemplação paradisíaca. É um contraste enorme com outras produções, especialmente aquelas realizadas por estrangeiros a respeito da Amazônia. Nessas, são comuns usos de drones, helicópteros, imagens aéreas e quase-heroicas. E aqui, Bruno Jorge filma de perto, interessado em cada detalhe através dos rostos dos corubos. Quando se sentam e cria-se uma roda de conversa, a câmera atravessa cada um, como um olhar curioso enxergando pela primeira vez esse povo isolado. Portanto, acaba trazendo um gaze (olhar, em inglês), totalmente antropológico. A máquina de filmar possui um DNA tão facilmente capaz de rastrear. É possível, naturalmente, entender quem o filma, para quem deseja filmar e quais são os interesses ao filmar.
Esse trabalho torna o filme nesse sentido fácil. É direto, simples, talvez. O seu silêncio até na movimentação traz na realidade uma abertura para em certos momentos, contemplarmos pensamentos políticos. A maior sacada de Bruno Jorge é de, através das setpieces, montar um palco em que nos calamos, observamos e lembramos. A imagem sólida de Bruno Pereira reverbera na tela grande, não como um fantasma, mas como um prelúdio de um triste futuro que já se jaz presente. Antes, as notícias de seu assassinato formavam através de fotos apenas um passado ali existente, imagens que representavam ele estar morto. Mas ao passar de “A Invenção do Outro”, a sua forma se engrandece para apresentar solidificação de alguém que recentemente se foi. É algo interessante, que infelizmente se apresenta apenas após essa ressignificação da morte.
Todavia, o que mais se conforma dentro do documentário é justamente o restante de seus personagens ali produzidos. Xuxu, um dos mais interessantes corubos, representa medo, ansiedade, até mesmo cansaço. Sua posição dramática recai sob si, os choros, as risadas, todas elas são tão honestas e inocentes. O olhar observador continua, e assim, não dramatiza uma questão seca como é a de reencontrar companheiros que outrora estavam perdidos. Fala-se muito sobre honestidade no cinema. Em um mundo em que produzimos lágrimas falsas e de crocodilos, uma câmera na mão que apenas gosta de filmar, na mão mesmo, e estática, essa ação emocionante de poder se vulnerabilizar é ótima. É um conceito muito pouco industrial, algo até irônico dentro do cinema que gira a Amazônia.
“A Invenção do Outro” é sobre o tempo. O tempo que se passou, o tempo que se manteve no seu corte longo, o momento que o futuro sedimentou. As mortes que se delongaram mudam a visão do espectador, que é protagoniza no filme de Bruno Jorge. A inquietude através do silêncio apenas se mistura com o longo arco dramático que se produz através de uma lenta queimação – slow burning – buscando essa incerteza do outro.